Da bomba ao copo: investigação revela rede que espalhou metanol em bebidas

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A investigação da Polícia Civil de São Paulo revelou um esquema sofisticado que conectava postos de combustível no ABC Paulista, uma fábrica clandestina de bebidas e bares da capital. O caminho do metanol — álcool altamente tóxico — resultou em seis mortes confirmadas e pelo menos 38 casos de intoxicação no estado. O caso, que começou com sintomas misteriosos em hospitais paulistanos, agora expõe um sistema criminoso que transformou combustível em veneno líquido nas prateleiras de bares e adegas.

O início da crise: sintomas e suspeitas

Os primeiros casos surgiram em agosto, quando pacientes começaram a dar entrada em hospitais com falência renal e cegueira súbita. A Secretaria de Saúde logo percebeu que algo estava errado: as vítimas não haviam ingerido produtos industriais, mas sim bebidas alcoólicas comuns. Um alerta foi emitido, e o termo “crise do metanol” passou a circular entre médicos e investigadores.

O caminho do veneno

De acordo com a polícia, o etanol adulterado saía de dois postos de combustível — um em Santo André e outro em São Bernardo do Campo. O produto era transportado para uma fábrica clandestina, desmantelada em 10 de outubro, onde recebia adição de metanol antes de ser transformado em vodca, gin e destilados falsificados. As amostras recolhidas no local apresentaram até 40% de metanol, índice considerado letal — acima dos 0,1% já perigosos ao organismo humano.

Localizada em São Bernardo do Campo, a fábrica operava sem licença sanitária e sem qualquer controle fiscal. Ali, segundo os investigadores, centenas de garrafas com rótulos de marcas conhecidas eram reenchidas e lacradas à mão. Tambores de combustível ficavam ao lado de equipamentos de envase, em uma cena digna de filme policial.

O comando do esquema

O grupo era liderado por Vanessa Maria da Silva, presa na semana passada. Ao lado do ex-marido, do pai e do cunhado, ela coordenava toda a operação: compra de etanol, mistura com metanol, envase e distribuição. A polícia chegou à quadrilha após rastrear a morte de Ricardo Lopes Mira, empresário de 54 anos, a primeira vítima confirmada da tragédia.

Garrafas, rótulos e logística

A investigação descobriu que o fornecedor das garrafas trabalhava a poucos metros de um dos postos suspeitos, o que facilitava a movimentação dos produtos. As embalagens, muitas delas de marcas legítimas, eram recolhidas em bares e revendidas ao grupo criminoso. A polícia apreendeu mais de mil garrafas prontas para distribuição, o que indica um esquema de produção contínua.

As bebidas adulteradas chegaram a bares e adegas em várias regiões de São Paulo, incluindo bairros da Mooca e da Saúde. Ao menos quatro estabelecimentos já tiveram as Inscrições Estaduais suspensas pela Secretaria da Fazenda. Autoridades afirmam que parte das bebidas pode ter circulado sem rótulos, em embalagens improvisadas.

O elo com o combustível adulterado

Segundo a Polícia Federal e a Receita, há indícios de que o metanol tenha sido desviado de usinas e importadoras químicas, destinado oficialmente à indústria, mas redirecionado ao mercado ilegal. Parte do produto teria chegado diretamente aos postos do ABC Paulista, burlando notas fiscais e controles da ANP. A Operação Alquimia, deflagrada nesta semana, tenta identificar os elos entre os fornecedores e os distribuidores ilegais.

Embora os presos até o momento não tenham relação direta com o PCC, o secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, reconheceu que a rede de adulteração de combustíveis no estado é historicamente infiltrada por facções. Uma das bandeiras dos postos investigados já havia sido citada na Operação Carbono Oculto, que apura o controle do crime organizado sobre o mercado de combustíveis.

Tragédia e alerta nacional

O caso do “metanol nos copos” é considerado o maior escândalo de adulteração de bebidas em São Paulo desde os anos 1990. Especialistas alertam que a tragédia expôs uma falha sistêmica na fiscalização do comércio de combustíveis e bebidas, setores que se cruzaram de forma mortal. Enquanto novas vítimas seguem em tratamento, a polícia tenta agora rastrear cada elo dessa cadeia que transformou etanol em arma química — e bares em pontos de risco para a população.